Hoje resolvi compartilhar um texto sobre partos domiciliares, de autoria de Suzy Meira, uma médica anestesista do Rio Grande do Sul. Tive contato com ele num grupo desses do Facebook, formado exclusivamente por médicos egressos da minha faculdade, que iniciaram a partir dele um debate bem interessante. No texto ela não defende e nem se coloca radicalmente contra os partos domiciliares, mas coloca com muita propriedade que o radicalismo é sempre ruim, tanto para um lado como para o outro, e que as mulheres devem tomar cuidado antes de adotar como sua a ideologia da outra, o que acho bem válido quando alguma coisa começa a virar modinha sem que os riscos sejam devidamente considerados.
No debate, acabou aparecendo com mais clareza a opinião de médicos de que, no âmbito da paciente que depende do SUS, o parto em casas de parto pode ter um objetivo sujo de reduzir os custos da assistência, o que é realmente um perigo.
Adorei também a parte em que ela fala que nem tudo que se faz dentro de um hospital é impessoal e desumano. Tive um parto cesárea, obviamente em hospital, com assistência pré, peri e pós-natal muito individualizadas e de excelente qualidade, de acordo com as minhas vontades, ansiedades e angústias.
Vamos ao texto:
"Ante as marchas pelo parto em casa, que estão acontecendo pelo Brasil, os posts de amigas queridas, os direitos das pessoas, suas idéias e sentimentos sobre seus direitos e papéis, minha realidade como mãe de 3 filhos saudáveis (nascidos um de cesárea e dois de parto, com e sem analgesia, e amamentados por 9 meses, um ano e meio e outro por dois anos e meio), e sendo médica anestesista, que trabalha há 18 anos em centros obstétricos bem heterogêneos entre si... com pacientes com realidades psicossociais, culturais e financeiras mais heterogêneas ainda... O privilégio que tenho de presenciar o transbordar de muitas vidas lindas que vêm a esse mundo... E também o respeito e o apoio que já comparti quando o karma vence o dharma, e todo o esforço humano tem que se render, ante à impossibilidade de ajudar para a vida que não conseguiu nascer... Convido a pensarmos juntos sobre alguns pontos:
Acredito que a todo abuso de poder, mesmo que leve séculos, haverá uma revanche cultural, social. Para um lado, para qualquer lado, a esmo, ou direcionada por ideologias, entusiasmos, sentimentos verdadeiros, o que for. Certo é que uma revanche ocorrerá. E também de algum modo alguma coisa melhorará, mesmo que no início se penda para o extremo oposto. Isso é assim desde que o mundo é mundo. Com reis, senhores feudais, bispos, magos, médicos, senhores de engenho, aristocratas, políticos... que exerceram algum tipo de autoritarismo, inclusive o de pais e mães de todos os séculos, que também exercem grandes poderes no mundo todo, em cada lar.
Hoje, em diversos segmentos, estamos presenciando essas revanches.
Tudo isso junto me faz pensar...
Se existirá um, talvez mais de um caminho que seja ao mesmo tempo justo e afetivamente aconchegante e confortável, e também espontâneo, instintivo, mas com segurança verdadeira.
Alguém poderá me dizer: 'Ora, mas segurança, risco zero, desde que se nasce, não se tem. A única certeza é que um dia vamos morrer.' Mas não precisamos atravessar a rua em uma faixa de segurança, sem olhar muito para os lados, porque se acredita que tudo funcionará bem, ou que se esteja com tudo sob controle. Muitas variáveis podem se interpor nessa situação. Variáveis que não estávamos esperando, dificuldades de um país em desenvolvimento, dificuldades sociais, econômicas, financeiras. Tantas coisas podem acontecer. Não estou em absoluto comparando um parto em casa com atravessar na faixa sem olhar para os lados. Mas estou propondo que se olhe realmente para todos os lados da situação.
Ninguém pode afirmar que tudo que esteja a princípio bem, vá continuar assim.
Há duas semanas, uma gestante em início de trabalho de parto, com tudo bem, no hospital, teve subitamente um descolamento de placenta. Será que todos sabem o que isso significa?
Para essa mãe, que recebeu atendimento imediato, pois já estava dentro de um local que, além de parto, faz também cesárea, teve sua vida salva, apesar do sangramento profuso. O mesmo não foi possível com seu bebê. Apesar de toda a rapidez de um centro hospitalar obstétrico. Um bebê gordinho, perfeitinho, rostinho parecido com a mãe. Não suportou. Tentar de tudo. Toda a equipe envolvida, agilizando tudo. Impossibilidade. Imobilidade. Silêncio. Dar a notícia. Apoio. Choro e desespero de quem esperava tanto por alguém. Aceitação de que não se é deus. Em um hospital. Ao menos tudo que a tão criticada medicina possa fazer, foi feito.
E se fosse em casa? Em casa de parto? Onde quer que fosse? E se não der tempo, no caso de um imprevisto?
E se o bebê sofrer antes de nascer, com oxigenação insuficiente? Ou se ele tiver que nascer rápido, por risco iminente de morte?
Parece que sou hiper pessimista, fantasiosa até, mas quem vive diariamente as mínimas porcentagens onde tudo vai bem e em pouquíssimo tempo já tem que melhorar pra ontem, para garantir o direito da vida..., sabe o quanto dói para qualquer profissional da saúde e para uma mãe ver um bebê morto, ou asfixiado, com permanente lesão cerebral. Muitas crianças, após alguns anos, começam com déficit de aprendizagem, convulsionam sem muita explicação e vai se ver lá atrás, tiveram partos longos, difíceis, com dificuldades de oxigenação do bebê.
Claro que não significa que vá acontecer uma tragédia todo dia, mas se o 'felizardo' fosse seu bebê... e você não estivesse no melhor lugar do mundo para salvar a vida dele, pelo motivo mais verdadeiro, instintivo e procedente que fosse, você não sentiria nenhuma culpa de levar uma criancinha com retardo mental de carrinho pelo resto da sua vida?
Sim, me parece muito importante o direito de escolha, o respeito.
Mas antes de tudo, o direito à vida. E vida sã. O direito de respirar, de se oxigenar.
Bebês com cérebro funcionando, com toda a sua complexidade e potencialidade.
Morria muita mãe de parto há não muito tempo atrás. Nascia muito bebê 'abobado', como minha bisa dizia. Tá certo, era pra fora, em lugares distantes de um centro. Mas alguém já pensou no tempo que levaria uma paciente para entrar numa ambulância, ou mesmo de carro particular, no trânsito, para chegar em um hospital e lá dentro, estar numa sala de cirurgia e iniciar uma cesárea?
Será que realmente uma estatística inglesa pode ser totalmente aplicada aqui no Brasil, onde nem quem chega ao hospital consegue ser atendido e algumas vezes, nem sobreviver? E na urgência da urgência, então...
Estatísticas de 0,60 e poucos para 1,27% não são significativas?
Será que os europeus tomariam as mesmas diretrizes se tivessem, em profusão, o seguinte material psicossocial junto com o nascimento dos bebês:
Um bebê, a tia que assistiu ao nascimento. Ao ser perguntada se o pai estava nervoso e não quis entrar, a mãe conta que ele estava no presídio há alguns dias, preso em flagrante por assalto a um estabelecimento à mão armada... Que ganhava bem, tinha carro e moto, mas resolveu assaltar. Àquele dia, ela não sabia que ele ia assaltar. Mas que ela estava tranquila, porque ia ganhar do governo ajuda financeira para cada filho...
A outra, uma barriguinha diminuta, o bebê não estava crescendo. Ela já tinha diminuído, mas ainda estava fumando 2 carteiras de cigarro por dia. Mas disse que vai tentar parar... Não fez nenhuma consulta de pré-natal, porque não teve tempo. Não lembra quando engravidou e não sabe para quando é o bebê...
Outra, na festa rave teve ruptura da bolsa, mas não percebeu... Alguém a traz ainda drogada. O bebê cheio de arritmias. Cesárea de urgência. Ela conta que agora vai ir na igreja e vai parar de beber e de usar crack. O marido assistindo ao nascimento e ela contando, rindo, que nem sabe de quem seja a criança...
Outra, 15 anos, engravidou no 'pancadão' (conhecem?) e portanto não sabe quem possa ser o pai da criança. A mãe que a filha pulava a janela de noite e ela nem via.
Outra, gestante de 13 anos sendo acompanhada no parto pela avó do bebê, de 28. A bisa tem 44. A tatara ( trisavó, para os mais exigentes...) tem 65. Perguntada porque nesse caso teve uma distância de vinte anos, esclareceu que a bisa era a terceira filha da tatara.
Fora o aspecto da saúde cerebral do bebê e de possíveis sangramentos da mãe, gostaria de ressaltar uma outra questão:
QUEM teria os privilégios de escolher em que lugar parir seu bebê? Não temos hospitais suficientes, mas disporíamos de casas de parto suficientes? Cesárea de urgência seria também na casa de parto?
E uma mãe mais desprovida financeiramente, que queira ganhar em casa?
Se algum dia, digamos que os tão criticados Conselhos permitissem ao médico realizar partos em casa, o SUS, que já paga mal médicos plantonistas, iria dispor de equipes a domicílio? Parteiras, doulas seriam pagas pelo SUS, para o conforto das gestantes em casa? Quem não tenha carro, nem dinheiro para táxi, esperaria uma ambulância que lhe levasse ao hospital?
Empoderamento, protagonismo da mulher, escolhas, direitos, nascimento digno... Não seria mais simples para uma gestante escolher, como ela certamente faz em relação a qualquer outra especialidade, um obstetra indicado por conhecidos, que tenha concepções mais em acordo com as suas?
Tipo ser 'bem parteiro', que tenha uma boa relação com as pacientes, que seja tranquilo e competente? Tem tanta coisa bonita que se faz em um hospital...
É que isso não aparece no youtube.
Não só em hospitais de convênios, mas nos hospitais que atendem predominantemente SUS, a equipe dá todo um suporte durante o trabalho de parto, e na hora explica o que vai acontecer, esclarece dúvidas, reassegura sentimentos, estimula potenciais. Tem gente que faz verdadeiras terapias breves unifocais, de urgência, com situações psicológicas delicadas da vida da gente. E também ajuda a tirar fotografias, porque às vezes os pais estão nervosos, podendo curtir o bebê tète-a-tète, e também aparecendo nas fotos. Sai cada zoom mais lindinho que o outro. Música da antena 1 tocando. O bebê fica no colinho da mãe. Toma peito. O pai ajuda a dar o banho e fica com o bebê no bercinho aquecido nos minutos que a mãe precisa para ficar pronta do parto ou terminar a cesárea. Depois o bebê fica todo o tempo junto da mãe, se ele estiver bem. Nossa... tanta gente boa fazendo um trabalho tão bonito, no meio de um hospital, mas sem bandeiras. Um potencial sem fronteiras.
Toda ideologia delimita, limita a realidade multifacetada, multifatorial, dialética.
Corre o risco de ser mais fechada que sua vontade inicial de abertura e mudança ante um fechamento.
Num país sem recursos bem administrados, com uma população com valores antagônicos, qual conduta é mais segura às suas necessidades "afetivas, psicológicas e fisiológicas"... Será que não esquecemos de ponderar também as necessidades patológicas de TODOS os envolvidos? Além das patologias físicas que emergem subitamente ante nossos olhos e coronárias... Há as patologias das gestantes com terror à dor, que trocam de médico se este não fizer cesárea; as que processam por qualquer motivo subjetivo se o médico explica da possibilidade de parto e não de cesárea, e algo não acontecer como na disneylandia; as que querem tirar antes o bebê para não ficarem com estrias; há gente apressada, sem paciência, estressada... Há pessoas autoritárias, com ideologias encerradas em si, acirradas, sejam médicos, enfermeiros, parteiros, doulas, gestantes, papais, repórteres, modelos, cantores, favelados, drogaditos, etc... e gestantes que não fazem ideia do que seja uma urgência obstétrica, ou que perderam a aula na facul sobre bactérias, sepse, endometrite, laceração de reto, com colostomia, de descolamento de placenta, ruptura uterina, pré-eclâmpsia, eclâmpsia, SARA, atonia uterina...parada cardíaca, aspiração de mecônio, paralisia cerebral, hipóxia...
Tudo isso, a partir de uma coisa tão bonita, natural, simples e complexa, que é um parto.
Tudo pode acontecer.
Rogo ao senhor do tempo e de todas as variáveis...
Se alguém for ateu e for criticar meu também direito a achar alguma coisa, como todo mundo...
Então rogo apenas ao tempo e a todas as variáveis desse espaço, que é pura vacuidade... que é pura bênção,
que tudo vê e nos provê...
Que nessa unicidade, os movimentos da vida aconteçam como precisam acontecer, mas que cada vez menos gente morra por idéias, nem se prejudique com idéias de outros, ou se arrependa tarde demais por necessidades, instintos, concepções e sentimentos, sejam eles para que lado forem.
Que todos possam ser ouvidos.
Que cada vez mais pessoas se empoderem do que lhes pertence e que não se apoderem do que seja do outro.
Que tenhamos todos nossos direitos e opiniões respeitados, quaisquer que sejam.
Que possamos respeitar os vivos, os mortos que nos antecederam e também aqueles que ainda não nasceram, que nos sucederão.
Que haja cada vez mais espaço para a vida transbordar no cálice do nosso peito, da nossa alma.
E que todos nós nos responsabilizemos por nossos movimentos, alumiando, à luz da consciência do ser, nossas sabedorias, mas principalmente nossas ignorâncias.
Saúde a todos nós.
E muito amor a nos guiar na lucidez, na compaixão, na misericórdia, na gratidão, na tolerância."
Nota da Ju:
Obstetras não são um mal desnecessário. São extremamente necessários e consistem num bem a uma gravidez, desde que bem escolhidos, num mundo em que haja opção.
Infelizmente essa não é a realidade da maioria das mulheres no Brasil, que muitas vezes nem acesso a um Pré Natal de qualidade tem.
Fui extremamente bem atendida pelo obstetra que escolhi, o QUARTO que visitei. Infelizmente, não confiaria a vida do meu filho (e a minha) aos outros três. O tipo de parto é um detalhe se a gente confia em quem nos acompanha. Mas infelizmente essa confiança não é tão simples hoje em dia.
Fui submetida a uma cesárea, feita no dia em que entrei em trabalho de parto. Se o médico me induziu a isso? De forma alguma...
Tenho um motivo médico (hematológico) raro que meio que indicava a via de parto, embora a indicação seja questionada por uma parte dos poucos estudos sobre o tema. Eu, Juliana, preferi não arriscar. Não sou romântica, sou objetiva. O parto para mim foi um detalhe, para alcançar o objetivo maior: meu filho. Tudo correu da maneira mais tranquila e ficamos todos bem.
Quem achou ruim e quiser invadir o meu quadrado, fique à vontade para pagar minhas contas!
wow.... fantástico. fantástico. fantástico.
ResponderExcluirsimplesmente, fantástico.
sem mais, você já disse tudo.
Oi Dani!
ExcluirObrigada pela visita, mas o texto não é meu! Conforme escrevo lá em cima, na primeira linha, o texto é de Suzy Meira, uma colega anestesista. Vou pintar de vermelho...
Fantástico seu texto! Não lembro bem como cheguei aqui mas só posso dizer que assino embaixo do que vc escreveu. Radicalismos não funcionam, modismos também não. O pior é a quantidade de pessoas indo pelo modismo e assumindo riscos que desconhecem porque as militantes simplesmente dizem que é tudo lindo e que tudo o que o médico diz que pode ser um problema é porque ele é um "malvado cesarista". Bom senso em TUDO é o essencial!
ResponderExcluirOi Syl!
ExcluirObrigada pela visita, mas o texto não é meu! Conforme escrevo lá em cima, na primeira linha, o texto é de Suzy Meira, uma colega anestesista. Vou pintar de vermelho...
Gostaria que tivesse o joinha do facebook aqui pra eu curtir o seu texto !
ResponderExcluirGente, agradeço os elogios. Porém O TEXTO NÃO É MEU. Conforme escrevo lá em cima, na primeira linha, o texto é de Suzy Meira, uma colega anestesista. Vou pintar de vermelho...
ResponderExcluirMuito bom!
ResponderExcluirExcelente texto... parabéns a autora pela lucidez de sua escrita.
ResponderExcluirJuliana, vou compartilhar esse texto da Dra. Suzy no meu blog. Não sou médico, mas filho, marido, irmão e cunhado de médicos, e sei o que é a luta de vocês. Escrevi um texto sobre esse tema em meu blog...[ http://bloghapax.blogspot.com.br/2012/08/sobre-o-parto-humanizado-ou-se-querem.html ] e vejo que esse outro texto, mais técnico e pessoal, pode melhor esclarecer os fatos. De qualquer forma, parabéns pela postagem, e transmita os parabéns também para Dra. Suzy.
ResponderExcluirSem problemas, vou lá fuçar daqui a pouco!
Excluir